sábado, fevereiro 09, 2008

O CASO DA "EVA" MITOCONDRIAL

O CASO DA 'EVA' MITOCONDRIAL
de Frank R. ZindlerNo dia primeiro de janeiro de 1987, o periódico britânico Nature sacudiu o mundo científico com um artigo entitulado “Mitochondrial DNA and human evolution” (DNA mitocondrial e a evolução humana). Escrito por Rebecca Cann da Universidade do Havaí, juntamente com Mark Stoneking e Allan Wilson, de Berkeley, o artigo anunciou a descoberta impressionante de que todas as pessoas na Terra vivas atualmente herdaram seus genes mitocondriais de apenas uma mulher, que viveu na África há aproximadamente 200.000 anos. Cann e seus colaboradores chegaram à esta conclusão analisando o material hereditário (DNA) carregado pela mitocôndria – a geradora de energia da célula. Foram selecionadas mitocôndrias de pessoas representando todas as raças existentes e todas as regiões geográficas que se sabe terem sido povoadas pelos humanos desde tempos antigos. As mitocôndrias são descendentes de bactérias aeróbicas que já tiveram vida livre há mais de um bilhão de anos e que passaram a residir em células maiores, que acabaram evoluindo até as plantas e os animais. Devido a esse passado de vida livre, as mitocôndrias até hoje ainda carregam um pouco de seu próprio material genético original, e são capazes de se reproduzir como se ainda fossem bactérias. Os genes mitocondriais são altamente adequados para o estudo de eventos “recentes” (menos de um milhão de anos) na evolução humana devido a duas peculiaridades. Primeiro de tudo, elas podem acumular mutações e evoluir mais rapidamente que os genes situados no núcleo da célula. Isso permite um olhar mais refinado e próximo da mudança evolucionária. Em segundo lugar, as mitocôndrias são herdadas apenas pela linha materna. Embora as células do esperma humano contenham algumas mitocôndrias, elas não se tornam parte da população mitocondrial do ovo fertilizado, ou zigoto. Isso impede que o registro da história mutacional se misture a cada geração – o que não é o caso dos genes no núcleo da célula. Genes nucleares são misturados e recombinados a cada geração, obscurecendo assim as características de pequena escala das linhagens evolucionárias. Foi talvez inevitável que a mulher africana que emergiu como a progenitora que emergiu da linhagem mitocondrial reconstruída pelo computador de Cann fosse chamada de “Eva Mitocondrial” ou apenas “Eva”. Uma vez que o nome Eva aparecesse, era absolutamente inevitável que as pessoas – não apenas os criacionistas – iriam erroneamente pensar que a pesquisa mostrava que todas as pessoas vivas hoje em dia tivessem apenas um ancestral feminino, que viveu há 200.000 anos, ou que houve apenas uma mulher humana na Terra há 200.000 anos. Na verdade, é claro, o trabalho de Cann não serve de consolo algum para os criacionistas. O fato de que Eva viveu há 200.000 ano – e não em 4004 AEC – é o bastante para afundar a arca da criação. Mas além desse ponto obvio, um entendimento mais profundo do trabalho de Cann mostra ser completamente incompatível com as afirmações criacionistas de que o segundo mito da criação do Gênesis foi verificado com as ferramentas da genética molecular. Infelizmente, seu trabalho é sutil e requer um pouco de esforço para ser compreendido. Nos deparamos com o problema de explicar para os leigos inteligentes algo que mesmo poucos biólogos profissionais parecem ter compreendido. Enquanto tentamos desemaranhar a confusão, devemos notar que a pesquisa mostra apenas que nossas mitocôndrias – não os nossos genes nucleares – são descendentes de um único individuo. Isso não quer dizer que nossos genes nucleares derivaram de apenas uma pessoa. E certamente não implica que nós temos apenas uma mulher ancestral na geração de 200.000 AEC. O que ele mostra é que, a partir de muitos milhares de mulheres daquela geração remota que passaram seus genes nucleares até nós (ou seja, mulheres que de fato foram ancestrais das pessoas vivas hoje em dia), apenas uma teve sucesso em passar adiante suas mitocôndrias em uma linhagem contínua até o presente. Dito de um modo diferente, a pesquisa mostra que de todas as mulheres de 200.000 AEC que começaram a passar adiante suas mitocôndrias para nós, apenas uma mulher teve sucesso. Em todas as outras linhagens femininas, o desastre as atingiu em várias épocas após 200.000 AEC, de modo que as mitocôndrias não foram mais passadas adiante – mesmo que a mulher em questão tenha tido descendentes em qualquer geração existente entre aquela época e agora. Qual foi a natureza do “desastre” que apagou todas as linhagens mitocondriais menos uma? Foi o dilúvio de Noé? Absolutamente não. O “desastre” foi simplesmente o aparecimento em várias linhagens de uma geração contendo apenas filhos homens! Tais filhos homens tiveram que procurar parceiras de outras linhagens, e dessa forma conseguiriam as mitocôndrias daquelas outras linhagens. Sua própria linhagem mitocondrial se extinguiu quando eles não tiveram irmãs para passa-las adiante. Entre cada uma das linhagens iniciadas pelas contemporâneas de Eva, no decorrer de milhares de anos, o desastre de uma geração só de meninos aconteceu pelo menos uma vez – apagando assim o aspecto mitocondrial daquelas linhagens. Apenas a linhagem “de Eva” conseguiu produzir pelo menos uma mulher em cada geração até que todas as linhagens mitocondriais de suas contemporâneas se extinguiram. Enquanto aquelas outras linhas mitocondriais se extinguiran, as filhas de Eva se reproduziram com os filhos que representavam os becos-sem-saída daquelas linhas. Assim, as mitocôndrias de Eva foram transplantadas para outras linhagens – que continuaram a viver e se multiplicar, apesar de dali em diante sempre passarem as mitocôndrias de Eva e não as suas próprias. Gradualmente torna-se aparente que o problema do entendimento da história da Eva Mitocondrial é realmente um problema no entendimento de como a estatística da probabilidade se aplica a problemas de hereditariedade. A perda de uma linhagem mitocondrial tem semelhanças próximas à perda dos sobrenomes em sociedades patriarcais. A única diferença é que esses sobrenomes são passados através da descendência masculina, enquando as mitocôndrias são transmitidas através das mulheres. A Figura 1 mostra o caso hipotético de uma ilha deserta povoada por seis pessoas inicialmente portando seis sobrenomes diferentes. Em apenas três gerações, apenas um sobrenome restou. Figura 1. A perda dos sobrenomes. O caso de uma ilha deserta hipotética colonizada por seis pessoas portando seis sobrenomes diferentes. Dentro de três gerações apenas um sobrenome restou. Todos os membros da geração 3 (Ger. 3) receberam o nome de apenas um membro da geração 1 (Ger. 1), embora cada pessoa tenha quatro ancestrais naquela geração. Os ovais representam mulheres, os retângulos representam homens. Assumiu-se que uma das meninas Jones na geração 2 (Ger. 2) morreu antes de atingir a idade reprodutiva.Algo muito semelhante ao caso da Figura 1 realmente ocorreu na Ilha Pitcairn. Pitcairn foi fundada em 1790 por 13 mulheres taitianas e seis marinheiros ingleses que se amotinaram no Bounty. Metade dos sobrenomes originais desapareceu em sete gerações, e se o isolamento da ilha tivesse continuado, em algumas gerações a mais todos os sobrenomes remanescentes, menos um, teria desaparecido. Uma idéia do modo em que muitas linhagens mitocondriais podem ser exintas pode ser obtida de um exame da Figura 2, que mostra como todos os membros de uma geração (Ger. D) carregam as mitocôndrias de apenas um ancestral (M3) da geração A (Ger. A) – apesar de que cada pessoa da Ger. D tenha oito ancestrais na Ger. A. Figura 2. a perda das linhagens mitocondriais. Todos os membros da geração D (Ger. D) têm o mesmo perfil daquele de “Eva” (M3) na geração A (Ger. A). Apesar de todos os membros da Ger. D herdarem seu DNA mitocondrial de apenas uma mulher da Ger. A, cada pessoa na verdade tem oito ancestrais naquela geração – de onde alguns genes nucleares foram herdados. Os círculos representam as mulheres, os quadrados representam os homens. Note que nem todos os membros das Ger. B e C se reproduziram. Alguns podem ter morrido na infância, equanto outros podem não ter se casado.Correndo o risco de turvar as águas que podem ter sido clareadas pela discussão acima, devemos mencionar que uma contraparte masculina da Eva Mitocondrial está sendo procurada pelos geneticistas moleculares. O “Adão” procurado pêlos cientistas nesse caso é chamado mais especificamente de “Adao Cromossômico Y”, e ele é o progenitor de quem os cromossomos Y de todos os homens vivos hoje em dia foram herdados. Devemos lembrar que cromossomos sexuais dos seres humanos são de dois tipos: o de tamanho grande, X, e o pequeno e baixinho cromossomo Y. Os indivíduos que possuem dois cromossomos X são mulheres e indivíduos que possuem um cromossomo X e um Y são homens. Os cromossomos Y são herdados apenas de pai para filho. A perda das linhagens do cromossomo Y no decorrer das gerações é bastante análogo à perda dos sobrenomes ilustrado na Figura 1. Embora a reconstrução do Adão Cromossômico Y ainda não esteja completa, alguns pesquisadores esperam descobrir que ele viveu muitos milênios depois da Eva Mitocondrial! Isso é devido ao fato de a poligamia (com alguns homens tendo mais de uma esposa, e outros homens não tendo nenhuma) e outros fatores fazem com que as linhagens cromossomicas Y se extingam mais rapidamente do que as linhagens mitocondriais, e assim não temos que voltar tão longe no passado para encontrar Adão. De fato, um grupo de cientistas descobriu que Adão viveu numa época significativamente mais recente do que Eva1 e outro pesquisador2 descobriu que ele viveu há cerca de 188.000 anos – mas o possível erro no estudo é grande o bastante que não se pode concluir que Adão viveu significativamente depois de Eva. De forma talvez previsível, outros estudos produziram dados indicando que Adão é mais velho que Eva – tendo vivido por volta de 270.000 anos atrás – mas isso é fortemente contestado.3 Finalmente, houve um estudo do próprio cromossomo X e uma tentativa foi feita para descobrir a época da existência da “Eva Cromossômica X” – como distinta da Eva Mitocondrial. A Eva Cromossômica X é, descobriu-se, muito mais velha que a Eva Mitocondrial. Ela viveu em algum lugar entre 654.000 e 416.000 anos atrás.4 Convidamos os criacionistas a descobrir qual “Eva” certo dia recebeu instruções de uma cobra que falava hebraico. Podemos esperas ler muito mas sobre “Adão e Eva” nos próximos anos, mas certamente não vamos nos deparar com nada que nos faça levar a sério a fábula encontrada no Capitulo Dois do Gênesis. O que vamos aprender, eu espero, é que somos todos irmãos e irmãs em um sentido muito mais literal do que se supunha. Vamos aprender como enchemos a África e saímos daquele continente para encher a Terra. Vamos confirmar o fato de que somos, de fato, um produto dessa Terra – não o folguedo de um mágico celestial. ***Ensaio escrito em Fevereiro de 1988 e revisado em 1999. Ex-professo de biologia e geologia, Frank R. Zindler é agora é divulgador da ciência. Ele é membro da Associação Americana para o Avanço da Ciência, da Academia de Ciência de Nova York, da Sociedade de Literatura Bíblica, e das Escolas Americanas de Pesquisas Orientais. Ele é editor do American Atheist. Essay written in Frebruary 1988, revised in 1999. Formerly a professor of biology and geology, Frank R. Zindler is now a science writer. He is a member of the American Association for the Advancement of Science, the New York Academy of Science, The Society of Biblical Literature, and the American Schools of Oriental Research. He is the editor of American Atheist.

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