sexta-feira, fevereiro 29, 2008

O Homem e o Absoluto

O Homem e o Absoluto

Segundo a expressão de Lavelle, a morte dá «a todos os acontecimentos que a precederam esta marca do absoluto que nunca possuiriam se não viessem a interromper-se». O absoluto habita em cada uma das nossas empresas, na medida em que cada uma se realiza de uma vez para sempre e não será nunca recomeçada. Entra na nossa vida através da sua própria temporalidade. Assim o eterno torna-se fluido e reflui do fim ao coração da vida. A morte já não é a verdade da vida, a vida já não é a espera do momento em que a nossa essência será alterada. O que há sempre de incoactivo, de incompleto e de constrangedor no presente não é já um sinal de menor realidade.Mas então a verdade de um ser já não é aquilo em que se tornou no fim ou a sua essência, mas o seu devir activo ou a sua existência. E se, como Lavelle dizia em tempos, nos julgamos mais perto dos mortos que amámos do que dos vivos, é porque já nos não põem em dúvida e daqui para o futuro podemos sonhá-los a nosso gosto. Esta piedade é quase ímpia. A única recordação que lhes diz respeito é a que se refere ao uso que faziam de si próprios e do seu mundo, o acento da sua liberdade na incompletude da vida. O mesmo frágil princípio faz-nos viver e dá ao que fazemos um sentido inesgotável.Maurice Merleau-Ponty, in 'O Elogio da Filosofia'
Do alto do monte, Metatron olhava os campos semeados, as cidades borbulhantes, os oceanos plácidos e não sentia amor. Estava decidido a manter-se afastado dos outros pois não queria conspurcá-los com aquele sentimento mesquinho que o avassalava.Serafim, sefirá Kether tantas vezes confundido com Daat, confusão normal entre coroa e conhecimento na árvore da vida, encarregue de transmitir o amor do Pai aos demais, sentia-se impotente. E revoltado.Olhou em volta e observou a serenidade de todos os que continuavam o seu trabalho de devoção. Todos eles, Kether, Daat, Chochmá, Biná, Chessed, Guevurá, Tiféret, Netzach, Hod e Yessod – Serafins, Querubins e Tronos por um lado, Dominações, Potências e Virtudes por outro e ainda Principados, Arcanjos e Anjos por final, labutavam, cada qual à sua maneira, pelo bem estar do Homem, esse animal que o Pai teria teimado criar para sua satisfação, quem sabe tedioso de uma eternidade esvoaçante num universo que sabia de cor.Metatron sentia-se repudiado.Chamou os Príncipes de cada coro a concílio e, escondidos, conferenciaram.Veio ele, príncipe dos Serafins e encarregado, como já disse, da transmissão do amor aos demais, veio Haziel, príncipe dos Querubins, que guardava e transmitia os mistérios divinos e a sabedoria, compareceu também Tsaphkiel, conhecido noutras bandas como Auriel ou Cassiel, príncipe dos Tronos, encarregues de transmitir as mensagens e ordens de Deus aos demais Anjos.Vieram também Tsadkiel, ou Saquiel, ou Uriel, príncipe das Dominações que cuidavam que os demais seres celestes cumprissem as ordens divinas, Camael ou Samuel, príncipe das Potências que regulam os elementos terrestres e veio Rafael, das Virtudes responsáveis pela tradução da vontade do Pai.Compareceram ainda Haniel, príncipe dos Principados e protector dos líderes da Sociedade, Mikael ou Miguel, Arcanjo e executor das grandes tarefas de Deus e, por fim, Gabriel, príncipe dos Anjos que levam as mensagens aos Homens.Metatron olhou-os a todos, um por um, tentando divisar o que lhes pairava na alma, que alma eram eles, luz de luz, após o que declarou não ser mais capaz de cumprir a sua missão de levar-lhes o amor do Pai.Os outros entreolharam-se estupefactos e disseram “Mas tu, Metatron, preferido dos preferidos, eleito dos eleitos, escolhido entre os escolhidos para transportares todo o Amor do Amor, logo tu, te deixas avassalar por tal impotência? Que se passa, mau amigo?”Metatron chorava.“Mas não vêem vocês que Ele os ama mais que a nós? Não reparam vocês que não fazem mais que correr atrás dos incautos e que, de cada vez que não conseguem que o vosso beijo, sussurro, a vossa mão os ampare, Ele troveja em fúria e ameaça de expulsão?” Começou a haver desconforto na Assembleia dos Anjos.O Homem, esse animal mortal, escolhido para prazer do Pai, ocupava cada vez mais espaço na sua vida e, não raras vezes, Ele sentia-se atraiçoado. Mas pensava serem as mortais bestas desprovidas de conhecimento suficiente que lhes permitisse ver mais e descarregava a sua frustração nos seus seres outrora preferidos.“Mas que fascínio por seres pútridos de desgraça tem o Pai?” continuou Metatron. Mas que amor tem ele a tão abomináveis seres que se desprezam entre eles e que se recusam a ouvir-nos, a ouvi-Lo?”Miguel objectou dizendo que, não raras vezes, era enviado a executar um ou outro que descarrilavam do Plano Divino mas logo Haziel retorquiu que Metatron tinha razão. “Essa besta, o Homem, não é capaz de compreender o que quer que lhe digam”, disse, ao que Haniel e Gabriel anuíram de imediato.Somente Cassiel discordou. E disse: “O meu Pai fez o homem à sua imagem. Não me interessa para quê, o seu Amor por eles é o meu. Eu e os meus exércitos estamos a seu lado”, e retirou-se.Com ele retiraram-se Uriel e Camael.No instante seguinte as armas eram contadas e os exércitos chamados.Metatron chamava:Vehuiah, Jeliel, Elemiah, Mahasiah, Lehael, Achaiah, a mim!Haziel Cahethel, Aladuah, Laoviah, Hahahiah, Yeslel, Mebahel, Hariel, Hekamiah, a mim!Haniel, Daniel, Hahasiah, Iamamaiah, Nithael, Mebahiah, Poiel, a mim!Gabriel, Damabiah, Manakel, Ayel, Habuhiah, Rochel, Yabamiah, Haiaiel, Mumiah, a mim!Rafael gritava, mãos na cabeça, em desespero. Não sabiam o que aconteceria? Não conheciam eles a fúria do Pai? Mereceria Ele tal desprezo?Fugiu para junto de Deus a dar-lhe a notícia e já Cassiel chamava:Lauviah, Caliel, Leuviah, Pahaliah, Nelchael, Ieiaiel, Melahel, Haheuiah, pelo Pai!Uriel, Nith-Haiah, Haaiah, Ierathel, Seheiah, Reyel, Omael, Lecabel, Vasahiah, por Deus!Camael, Iehuiah, Lehahiah, Chavakiah, Menadel, Aniel, Haamiah, Rehael, Ieiazel, pelo Criador!Mikael, Nemamiah, Ieialel, Harahel, Mitzrael, Umabel, Ia-Hel, Anauel, Mehiel, pelos Céus, pelo Pai, pela sua Criação.Entretanto, Deus, na companhia das Tiféret, Virtudes, observava.Pediu a Rafael que o acompanhasse numa volta pelo Universo e que deixasse Hahahel à frente de Mikael, Veiliah, Yeliah, Sealiah, Ariel, Asaliah, Mihael e Vehuel a guardar os Homens.E disse: “Sabes, Rafael? Afinal, quem não compreendeu foram os Anjos. Os Homens, conscientes da sua mortalidade, sempre se surpreenderam uns aos outros. Matam, esfolam, submetem, castigam e, no entanto, são capazes de se reunir contra quem quer que os ameace. Nem que sejam vocês.” Continuou com Rafael que esvoaçava em sua volta.“Os Anjos”, disse Deus, “ainda não compreenderam a imortalidade. Não vêem que os fiz na perfeição e que hão-de combater-se uns aos outros pela eternidade. Morrer vezes sem conta mortes imagináveis apenas por um imortal e acordar vivos para sofrerem logo no instante seguinte. Hão-de se sentir empalados vezes sem conta e não aprender com isso.”Voltou-se para Rafael, uma lágrima escorria-lhe. “Vai, Rafael e leva-lhes a minha última mensagem: diz-lhes que os não quero por minha companhia, que renego a sua criação. Vou embora daqui, vou para a Terra. Humano me vou tornar e padecer da inexistência de mim. Vai, Rafael, e de seguida torna-te Homem, tu e os teus seguidores. A Morte, ofereço-ta junto com o que de mais valoroso existe na vida mortal, junto com tudo o que aprendi com o Homem todo este tempo.”E desapareceu.Rafael olhou para baixo e viu um menino nascer numa maternidade escondida no meio do bulício de uma cidade qualquer. Olhou para o lado e viu o sofrimento e a morte que haveriam de se propagar pelos séculos em constantes mutações do céu. Coisas que o Homem nunca haveria de ver ou aperceber-se.Chamou os restantes e, juntos, cumpriram a vontade do Pai.Houveram uns quantos Homens a nascer nesse dia, Homens iguais aos outros.Homens que iriam lutar mano a mano com a vida, esquecidos do que fora outrora a imagem de um Deus.Homens que iriam, contudo, continuar a adorar a Inexistência Sagrada enquanto, lá no alto, sangue alheado do mundo e do Criador, revoltava o céu em gritos lancinantes de dor para toda a eternidade.

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