Após muitas noites, separados, Nebo está novamente deitado
sozinho em sua cama, quando sente alguém deitar ao seu lado, vira-se para ver
quem é, e, para sua surpresa, vê Lizi. No momento em que ele foi falar, ela faz
sinal para fique quieto e o beija. Foi uma noite mágica, a primeira vez dos
dois. Quase não se falaram, não precisava, pareciam saber exatamente o que o
outro pensava.
Eram, neste momento, uma simbiose perfeita.
Ao amanhecer, depois de vários dias juntos, finalmente Nebo
conseguiu servir a ela o café da manhã, na cama. Cama esta, que agora estão
dividindo.
***
O assessor entra no gabinete.
Atrás de sua enorme mesa, sentado em uma confortável
poltrona, está o Chanceler.
O assessor acaba de voltar de Nibiru. As viagens entre os
dois planetas, sempre ocorrem quando há aproximação de suas órbitas, a cada
3600 anos de Nippur. Isso é essencial para economia de energia no transporte.
Mas a viagem do assessor foi uma exceção, precisava se certificar de que
nenhuma informação indevida fosse ventilada.
- Como foi à conversa? – Pergunta o Chanceler.
- Perfeito, ela não dirá nada! – Responde o assessor.
- Já imaginava. Ela sabe que irá prejudicar a si própria se
contar. E sobre seu pai?
- Ela continua achando que foi um acidente!
- Ótimo. Isto foi necessário, certamente ele a convenceria a
desistir. Tudo está saindo de acordo com o que previ. – Tomou um longo e
saboroso gole de seu drink. – Agora posso prosseguir com os planos. Nada, nem
ninguém, poderá me impedir!
Um animal acuado.
Essa é a melhor expressão para o que sinto neste momento.
Depois de ver minha foto no jornal com a manchete sobre o assassinato do
professor da USP, parecia que todos estavam me condenando e prontos para chamar
a policia.
Como iria escapar? Não poderia pegar taxi nem ônibus, muito
menos entrar em algum hotel ou sequer, ficar parado, no centro de Curitiba.
Ao meu lado parou um caminhãozinho. O motorista e o ajudante
abriram o compartimento de carga e entraram no furgão. Em pouco tempo, cada um
saiu, com um grande pedaço de carne nos ombros, e seguiram em direção a um
açougue. Não raciocinei, e, agindo de forma impulsiva, pulei para dentro do
furgão e me escondi atrás dos pedaços de carne. Em pouco tempo o motorista e o
ajudante voltaram, fecharam o furgão. Senti o veiculo sendo ligado e começando
a andar.
Era um furgão frigorifico, e em poucos minutos, comecei a
tremer de frio. Precisava resistir. Encolhi-me em um canto, abraçando a valise
com a tábua de argila e os decalques. Precisava me manter aquecido.
Depois de algumas entregas seguidas, nas quais sempre me
escondia atrás da carga, finalmente o caminhão começou a andar sem parar por
durante vários minutos. Não tinha a mínima idéia para onde iria, mas desde que
fosse para bem longe, estava bem, apesar do frio que estava sentindo.
Novamente outra entrega. Pelo tempo transcorrido, achei que
já era hora de sair, não deveríamos mais estar no centro de Curitiba e, já não
havia muita carne no compartimento para me esconder. Aguardei os dois ocupantes
do veiculo pegar, cada um seu pedaço de carne nos ombros e sair. Tirei a
cabeça, cuidadosamente, para fora do furgão, para observar onde estávamos.
É um grande depósito, talvez de alguma empresa. Há muitas
grandes prateleiras com alimentos, sacos de arroz, feijão, caixas de legumes e
verduras... pensei que poderíamos estar em alguma empresa fornecedora de
refeições industriais.
Sai do furgão e me escondi atrás de algumas caixas com
frutas e, aguardei pacientemente, pela noite, para poder sair com menos risco de
ser visto.
***
Aquele lugar não era mais seguro.
Ninsun sabia bem disso. Uma nave de reconhecimento Anunnaki
havia passado, poderiam só estar passeando, matando animais por puro prazer,
como costumavam fazer, ignorando os pedidos do Doutor Anzu, mas não podiam
arriscar. Tão logo terminaram de comer Ninsun falou para Gil:
- Junte nossas coisas querido, temos que ir. Vamos para o
leste.
E para o leste eles seguiram, sempre com todo cuidado,
sempre se protegendo. Procuravam sempre os lugares com mais árvores ou qualquer
coisa que os ocultasse se vistos do céu, e seguiam por baixo, mas olhando com
cuidado para o céu. Os Anunnakis não suportam o frio, por isso não vem para
esta parte congelada do planeta, então, por terra, eles não viriam, o perigo
estava no céu, e em suas naves.
- Gil – falou sua mãe –, olhe sempre para o céu, mas sem se
descuidar dos animais selvagens em terra, qualquer coisa estranha que vir,
esconda-se o mais rápido possível. Não temos como lutar contra eles e sua
tecnologia. Precisamos ser invisíveis.
Caminharam por alguns dias, Ninsun desviou um pouco o
caminho para passarem perto do mar, precisavam de sal, e o retiravam da água do
mar. Havia algum tempo que não vinham para esta região, pois era mais quente, o
que poderia atrair algum Anunnaki. Ela sabia da existência de uma confortável
caverna onde já haviam passado algum tempo, e da qual Ninsun tinha boas
lembranças. Isso fazia já alguns anos, Gil era ainda bem pequeno, mas ainda
assim, lembrou-se do lugar.
Ele gostava muito do mar, havia algo mágico, um tanto
melancólico. Sempre sentia um aperto no peito diante daquela massa de água que
carinhosamente lambe a branca areia da praia. Sempre se perguntou o que teria
do outro lado de toda esta água, sua mãe sempre lhe disse que não havia nada,
mas Gil não acreditava – deve ter algo, afinal, a terra é redonda – pensava.
Mas o que mais lhe agradava aqui era a temperatura, maior que os outros locais
onde passaram, por ele viveriam ali para sempre, mas sua mãe ficava apenas
tempo suficiente para conseguir o sal. Sempre repetia que ali não era seguro.
O frio o incomodava muito, apesar de toda a roupa que sua
mãe faz com grossas peles de animais, ainda assim sente muito frio. Gostaria de
ser como sua mãe que tem uma resistência muito grande às baixas temperaturas -
Talvez quando crescer! – pensava, e este pensamento o confortava, porque, em um
mundo como o seu, coberto de gelo, precisava criar resistência e pegar gosto
pelo frio, ou, sofreria pelo resto da vida.
Gil reconheceu a caverna imediatamente e, saiu em disparada
na sua direção. Queria ver como estavam os desenhos que fez, juntamente com
Hughu da última vez que estiveram ali. Mas, ao chegar próximo a entrada da
caverna, algo o deteve. Não sabia o que era, mas algo o perturbou e, ele parou.
Sentia que havia algo diferente naquela caverna. Algo, que ele não conhecia.
- Tem algo lá dentro mãe! – falou Gil.
- Você viu alguma coisa Gil?
- Não!
- Então como sabe?
- Não sei como! Mas eu sei... que tem algo lá, eu posso
sentir!
A noite chegou, e como tinha previsto o fluxo de pessoas
cessou.
Sai de meu esconderijo e fui até o banheiro, a natureza me
chamava. É um banheiro grande, com um enorme vestiário e vários armários de
metal, certamente onde os funcionários guardam suas coisas e, entre eles, há
vários bancos largos, feitos de madeira.
Sobre um dos bancos um jornal estava esquecido. Peguei-o na
esperança de encontrar a matéria onde me acusavam pela morte do amigo de Mari,
queria ver mais detalhes sobre o crime ao qual estavam me acusando. O jornal
era de outra agencia de notícias, mas, para minha decepção, também apresentava
a matéria do assassinato, e a minha foto.
“Briga por relíquia arqueológica motivou o assassinato
A policia diz não ter dúvidas quanto ao autor e a causa que
levaram ao assassinato do professor da USP. Segundo a policia de SP, o
assassino seria o também professor, Doutor Prawdanski (foto). O crime teria
sido motivado pela posse do artefato arqueológico a que o professor assassinado
se referiu em sua página pessoal. “A vaidade em se promover no meio acadêmico
foi o estopim do crime” disse o delegado encarregado do caso. “Não temos mais
nenhuma dúvida quanto ao executor”, completou.
O assassino continua foragido, e a policia pede para que, se
alguém tiver alguma informação, deve ligar para o disque denuncia no numero...
“
- Filhos da mãe! – Falei jogando o jornal sobre o banco –
Que mentirosos!
O jornal caiu aberto bem na pagina com minha foto. A minha
frente havia um espelho, comparei-me com a foto, era facilmente reconhecível.
Precisava, urgentemente, fazer algo, precisava mudar minha aparência.
Vasculhando no vestiário, encontrei o que precisava para a
mudança. De posse dos utensílios, fui para o chuveiro e penosamente comecei
minha transformação. Aproveitei para tomar um banho, estava realmente
precisando.
Ao sair, procurei novamente o espelho.
Estava muito diferente e... muito feio. Certamente, nem
minha mãe me reconheceria, eu próprio não estava me reconhecendo.
***
Ninsun e Gil chegam à porta da caverna. Esta já é uma
caverna conhecida, mas havia algo diferente. Ninsun não notara nada, mas Gil
sim. Era algo novo para ele, nunca havia sentido nada parecido, tanto que não
soube sequer explicar o que sentia para sua mãe.
- Tem algo ali dentro – falou Gil –, e está precisando de
ajuda!
- Você está me assustado Gil. Pare de brincadeira!
- Não estou brincando mãe, tem algo lá dentro e eu não sei o
que é!
Este é um planeta muito selvagem, Gil pode ter razão, pode
existir ai dentro algum animal perigoso, mas precisam de um local para passar a
noite, já vai escurecer logo, e fora de um abrigo, poderiam ser facilmente
localizados pelos Anunnakis, ainda mais onde estavam. É um local mais quente, e
por isso, mais próximo à Eridu, mas é um lugar especial, porque foi ali, nesta
caverna que Ninsun deu a luz ao seu filho. Ela própria escolheu este lugar
justamente pela temperatura, pois o frio poderia matar Gil que tem uma parte
Anunnaki.
Era uma noite de verão, a temperatura estava agradável,
porém, como é comum no verão desta parte de Nippur, chovia muito. Ninsun
acomodou-se para dormir, havia jantado um pouco de frutas, quando sentiu uma
dor muito forte.
- A hora chegou!
Tanto quanto a dor, um enorme medo cresceu dentro de si.
Estava sozinha, e iria dar a luz, neste momento sentiu uma ponta de
arrependimento de ter fugido, pensou que iria morrer, e começou a chorar.
A dor cada vez aumenta mais, sabia o que tinha que fazer,
havia estudado, mas agora não era mais teoria, agora era a vida real. O bebê
também não ajudava, já que, é muito grande, maior que um bebê normal de sua
espécie, não seria fácil o parto, ela começou a gritar. De repente um relâmpago
clareia a entrada da caverna, e ela viu alguns vultos. Eles vêm em sua direção,
mas a dor que sente é tão forte que nem se importa com isso. Os seres se
aproximam e a examinam a certa distancia, depois falam entre si, Ninsun não
consegue entender, e também não os reconhece, são seres de baixa estatura.
As criaturas se aproximam.
Uma segura na mão de Ninsun e a olha ternamente nos olhos,
isso traz um pouco de paz, outra vem com uma tigela com água que põe no fogo,
logo outra vem com algumas ervas.
Os seres começam com o procedimento do parto, Ninsun não
sabe quanto tempo Gil levou para nascer, mas pareceu uma eternidade, certamente
não conseguiria dar a luz sozinha. Finalmente o bebê nasceu, e chorou. Uma das
kerabulus limpa o recém nascido e o entrega à Ninsun com um sorriso. Ela o pega
em seus braços, é um menino e é lindo. Neste momento, ela teve a certeza de que
fizera a coisa certa, eles o iriam matar e agora, ele está a salvo em seus
braços, a recompensa chegara e era bem maior que ela esperava. Ela abraça o
bebê junto ao seu corpo e fala:
- Seu nome será... Gilgamesh!
Durante muitos anos cultivei, orgulhosamente, minhas
madeixas.
Sempre me gabava entre meus colegas por não ser calvo – a
maioria deles era. Além disso, conservava uma barba vistosa. Talvez por
resquícios inconscientes e primitivos de nossos antepassados, mas eu me sentia
bem com esta barba. Ela me fazia sentir imponente, másculo, bonito. Apesar de
que esta opinião não era compartilhada pelas minhas amigas do sexo oposto que,
dizem preferir homens sem barba. Na verdade, às vezes até me chamam de
Neandertal.
Não foi fácil para mim. De posse de um aparelho de barbear e
um sabonete, que encontrei no vestiário, parti para a raspagem minha tão
querida pelagem. Ao olhar no espelho não era mais eu. Não estava me
reconhecendo e esperava que ninguém me reconhecesse também.
No retrato que os jornais estão exibindo, meu rosto quase
não é visível, sendo coberto por pelos. Agora, com cabelo e barba raspados,
esperava passar despercebido, e conseguir fugir para longe, para um lugar onde
poderia terminar a tradução das relíquias e, manter minha vida a salvo.
***
- Fique aqui fora Gil! – Falou Ninsun entrando na caverna.
Ela carrega consigo uma lança com ponta de sílex bastante
afiada. Foi presente dos kerabulus, juntamente com uma faca do mesmo material.
Ela nunca usara a lança, mas a usaria se fosse preciso, tudo para defender seu
filho Gilgamesh. Em todo este tempo vivendo sozinha com seu filho, perdeu o
medo dos animais selvagens, sabe que não se pode subestimá-los, mas sabe também
que os animais os temem da mesma forma.
Sorrateiramente ela foi entrando na caverna, sua lança
apontada para frente. O escuro a cegou precisava acostumar sua vista. Apertou
seus olhos, tentando ver algo, e foi caminhando vagarosa e cuidadosamente para
dentro da caverna. Aos poucos seus olhos foram se acostumando com o escuro,
olhou ao seu entorno, foi identificando algumas manchas na parede, o resto de
uma fogueira que ela mesma acendera há anos, pinturas feitas por Gil...
Mas, ao olhar em um canto mais escuro da caverna, ela viu
algo que jamais imaginara ver, ao menos... não ali. A principio não acreditou,
achou que o escuro da caverna estivesse lhe pregando peças. Apertou mais seus
olhos, e deu um passo a frente.
A coisa se mexeu!
O susto foi tão grande que ela caiu para traz, sentada no
chão.
Foi rastejando de costas na tentativa de escapar, ainda
olhou novamente, na esperança de que aquela imagem fosse fruto de sua
imaginação, mas não era. Com suas pupilas dilatadas pelo medo, ela pode ver
claramente e ter a certeza do que via. Ninsun se vira para porta da caverna,
levanta-se e sai correndo, deixa para traz até a sua lança, enquanto grita
apavorada:
- FUJA GIL. DEPRESSA FUJA!
Fui para uma pequena cidade no interior de Santa Catarina.
Você pode estar se perguntando, se estou me escondendo,
porque falar onde estou. Primeiramente porque quando cito um lugar é porque já
faz um bom tempo que já sai dele e estou bem longe, em segundo lugar, porque
jamais falarei o nome da cidade, e no mundo, existem muitas.
Uma coisa que se aprende quando se viaja muito é que,
normalmente, as cidade tem as mesmas características, igreja, praça, monumento,
museu, lojas, hotéis... portanto, mesmo descrevendo detalhes da cidade, ainda
assim, será difícil descobrir a qual cidade estou me referindo.
Não foi minha escolha vir para esta cidade de Santa
Catarina. Quando sai da fábrica onde raspei os cabelos e a barba, sabia que não
poderia ir para rodoviária nem para o aeroporto, então, só me restou pedir
carona. E a carona que consegui, foi para esta cidade.
Quem gentilmente me cedeu uma carona, foi com um
caminhoneiro que transporta grãos do interior para ser industrializado em uma
fábrica da região metropolitana de Curitiba. Conversamos muito durante a
viagem, e, aparentemente, não me reconheceu. Parece que minha idéia em mudar a
aparência funcionou.
Além de raspar meu cabelo e barba, ainda consegui algumas roupas
no vestiário dos funcionários. Eram uniformes da Empresa onde me escondi isso,
acredito, ajudou na hora da carona.
***
- O trabalho foi limpo Kalkal? – pergunta o Chanceler.
- Como sempre, Senhor. – Responde Kalkal – O inventor criou
seu último protótipo!
Kalkal é o Anunnaki de confiança do Chanceler para
realização de trabalhos considerados desagradáveis, mas necessários aos seus
planos, como retirar de seu caminho alguém que não esteja agindo de acordo com
o esperado. Era o que o Chanceler costumava chamar de “a última alternativa”.
- Excelente – falou o Chanceler -, e o comunicador?
- Recolhido como prova, juntamente com o tigre
dente-de-sabre e com os restos de Edi, seu inventor.
- Destrua-o, não posso correr o risco de existirem comunicadores
não oficiais em Nippur. Informações são perigosas se não monitoradas. Meus
técnicos conseguiram interceptar as mensagens que não continham nada de mais,
mas, estavam direcionadas para Nibiru e não quero este tipo de comunicação,
pode ser enviada alguma informação que não deveria chegar aos ouvidos de certos
Anunnakis e...
A conversa foi interrompida pelo barulho da porta de seu
gabinete se abre com uma pancada. Anzu entra arrastando consigo um segurança e
a secretária do Chanceler. Está muito exaltado.
- Me deixem, preciso falar com você Chanceler. – Gritou
Anzu.
- Podem soltá-lo! – Falou o Chanceler para o segurança que
está agora agarrado ao pescoço de Anzu e para sua secretária que vinha
arrastada agarrada à sua perna.
- Como ousa liberar a matança de animais nativos? – Gritou
Anzu com o dedo apontado para o Chanceler.
Anzu fazia parte de um grupo de ambientalistas de Nibiru.
Já haviam realizado protestos, e todo tipo de sabotagem com
empresas e pessoas que desrespeitavam o meio ambiente. Seu grupo foi o
responsável pela conscientização, que acabou virando a lei, e que proíbe da
criação de seres artificiais e sua inclusão em Nibiru, lei esta que impede aos
Lulu Amelus de serem exportados para aquele planeta.
Anzu deixou o grupo para seguir como voluntário para Nippur,
sua autorização para ser biólogo neste planeta somente foi concedida quando ele
se desvinculou formalmente do grupo de ambientalistas. Isso deixou muitos dos
seus antigos colegas chateados, achavam que ele era um vira-casaca, mas, na
verdade veio para Nippur com uma missão, e já provara isso aos seus
companheiros em Nibiru.
- Por favor, sente-se. – Respondeu educadamente o Chanceler
apontando para uma cadeira ao lado de Kalkal.
Kalkal levanta-se para sair, ao que é impedido pelo
Chanceler que ergue uma das mãos ordenando que fique. Ordem diferente recebe a
secretária e o segurança, que são convidados a se retirar.
- Nós havíamos combinado que a matança de animais acabaria,
e agora você mesmo autoriza! – Falou o indignado Anzu.
- Primeiramente doutor, bom dia! – Falou irônico o Chanceler
- Depois, eu não autorizei, nem autorizarei nenhuma matança!
- E os grupos de remoção?
- Se o doutor se informar, saberá que é somente questão de
segurança, você soube o que o tigre dentes-de-sabre fez com um engenheiro nas
aralis? – Ele se referia ao Edi, o inventor do comunicador, que,
inexplicavelmente fora atacado pelo animal dentro de seu alojamento trancado.
- Sim, eu soube. Mas isso não é motivo para uma matança, nós
invadimos sua casa. – Contestou Anzu, ainda exaltado. - Este planeta é destes
animais, nós somos estranhos aqui, e temos que respeitá-los!
- As ordens são para remover os animais e, somente os
perigosos e que estiverem próximos de Eridu ou das minas, e não matá-los!
- Mas não os estão removendo, os estão massacrando!
- Doutor Anzu – o Chanceler toma fôlego, tentando manter-se
calmo -, esta sua atitude é extremamente infantil. O Doutor já havia me acusado
anteriormente e, provei que não estava por traz de matança nenhuma, agora vem
você novamente com acusações. Está ficando desagradável. – E fez um desafio –
Porque não prova o que está alegando!
- Não tenho provas... não agora, mas tenho certeza!
- Se está assim, tão desconfiado, porque não fiscaliza
pessoalmente os grupos de remoção? Vá pessoalmente com eles, e confirme que o
trabalho é somente para segurança dos Anunnakis. Não existe matança e se
existir não foi por minhas ordens e punirei severamente os responsáveis. Mas
exijo provas, sem elas, por favor, não volte mais ao meu gabinete!
- Sim, é isso que vou fazer, e filmarei tudo. – Afirma Anzu,
ainda não convencido – Trarei a prova da matança e exigirei a punição dos
culpados!
- Claro, me traga a filmagem que punirei, pessoalmente, o
infrator.
Anzu sai do gabinete, decidido a provar que as carcaças que
encontrou são resultado do trabalho dos grupos de remoção do Chanceler. Kalkal,
que só observou a cena, vira-se para o Chanceler e pergunta:
- Quer que algum acidente ocorra com o Doutor Anzu?
- Não! – respondeu pensativo o Chanceler. – Ainda não, seu
gênio impulsivo pode ser útil aos meus propósitos. Além do mais, sua morte
poderia atrair mais dos seus para Nippur. Ai sim, eu teria problemas.
O susto dentro da caverna foi tão grande que Ninsun caiu
para traz, sentada no chão.
Ela grita, desesperadamente, para que Gil, seu filho, fuja.
Sua lança fica na caverna, mas contra este tipo de perigo, sabe que seria
inútil.
Mesmo na fuga, não consegue esquecer aquela imagem. Ali
estava ele, bem em sua frente, deitado em um canto da caverna. Ao vê-la
estendeu a mão tremula em direção a Ninsun, e suplicou ajuda. Sua voz trouxe um
flash em sua cabeça de tudo que passou na cidade e, por impulso, fez exatamente
o contrário, ao invés de ajudar, levantou-se virando em direção á saída da
caverna, e saiu correndo cambaleante.
Ainda não acreditava no que vira.
- Como isso era possível?
Olhou para todas as direções procurando por outros
- Eles não andam sozinhos. - Pensou - Preciso proteger Gil.
Dentro desta caverna, exatamente onde Gil nasceu, lá estava
ele, um agonizante Anunnaki, implorando pela sua ajuda.
Pôde ver claramente a sua brancura, os Anunnakis são
albinos. Seu planeta não possui sol, portanto, não precisam de melanina para
protegê-los. Também são bem maiores e possuem o crânio mais alongado que os
Lulus. Ela tem certeza do que vira, não existe neste planeta nada que possa ser
confundido com um Anunnaki.
- Gilgamesh, onde está você? – Chama preocupada, porém, em
voz baixa, por medo que outros Anunnakis ouçam.
- Aqui mãe! – Grita Gil que está no alto de uma árvore.
Não havia dúvidas em sua cabeça, enquanto podiam, precisavam
fugir. Ninsun agarrou Gil pelo braço, e o puxou correndo em direção à floresta
fechada.
- O que aconteceu mãe?
- Corra Gil, não há tempo para explicações...
Os dois só pararam quando encontraram, bem longe, uma
pequena caverna no alto de uma pequena montanha. Ao chegarem já era noite e os
dois estavam sem fôlego, ambos sentaram no chão, exaustos. Gilgamesh estava
extremamente curioso, queria saber o que havia dentro da caverna, e porque ele
sentiu a sua presença, mas não conseguia perguntar, precisava respirar. Depois
de longos minutos, e agora já recuperados, Gil falou:
- Precisamos voltar, imediatamente!
Ninsun não entendeu. Varias coisas se passaram em sua
cabeça, especulando sobre o porquê deste desejo de Gil em voltar para perto do
Anunnaki. Cada explicação era mais perturbadora que outra. Finalmente, ela
criou coragem e perguntou:
- Porque você quer voltar até aquele lugar Gil?
- Porque... eu deixei lá minhas pedras para quebrar nozes.
Ela esboçou um sorriso. Como as crianças são inocentes e não
vêem o perigo, mas Ninsun soube, nesta hora, que havia chegado à hora, Gil não
poderia ter medo do que não sabia que existia. Precisava contar a Gil sobre os
Anunnakis.
- Gil – ela falou com um tom maternal –, eu preciso lhe
contar uma coisa, uma coisa que venho esperando o momento certo, e acho, o
momento é agora. Sempre procurei poupá-lo disto por durante toda a sua
infância, mas agora você já é um adolescente e creio que vai entender, além do
mais, acho que estamos em perigo e, se algo nos acontecer, você tem o direito
de saber o por que.
Ela contou para Gil a sua história, como foram criados para
servir de escravos, quão cruéis são seus criadores, os Anunnakis, e
principalmente sua fuga para salva-lo. Tentou ser o mais delicada possível,
poupando-o dos detalhes mais sórdidos. Gilgamesh, como era de se esperar, ficou
cheio de perguntas, e louco para conhecer os outros como eles, e era isso que
Ninsun sempre temera. Conhecendo seu filho, tinha medo que ele fosse de
encontro aos seus, o que ela tinha certeza, seria a sua morte. Para cortar um
pouco as perguntas dele, Ninsun mudou o foco da conversa, e contou o que havia
dentro da caverna.
- Ele está lá Gil, deitado. Parece ferido, mas poderia estar
fingindo, eles são bons nisso. – Ela tomou coragem, e concluiu. - Era um
Anunnaki!
- Mãe, ele não está fingindo. Ele está mesmo ferido, e
precisa de ajuda.
- Como pode ter certeza Gil?
- Não sei mãe. Eu senti algo, é como se eu soubesse o que
ele está pensando.
Este sentimento de Gil era muito estranho, Ninsun nunca
ouvira que alguém conseguisse saber o que outra pessoa está pensando, pelo
menos não sem vê-la. O corpo revela pensamentos, isso ela sabia. Alguns Lulus
tem esta habilidade, às vezes parecem que conseguem ler mentes, mas, na
verdade, é só leitura corporal. Olhares, gestos, expressões... tudo pode
revelar pensamentos. Gil não tinha visto o Anunnaki, como poderia saber o que
pensava. Imaginou se não poderia ser um truque dos Anunnakis.
Resolveu não seguir com esta conversa agora. Ajeitou um
canto para Gil dormir, ele reclamou que estava com fome, mas ela explicou a
ele, que era muito perigoso sair, melhor esperar amanhecer. Os Anunnakis
possuem óculos de visão noturna e o que Ninsun trouxe na sua fuga, havia ficado
com suas coisas perto do mar e da caverna onde está o Anunnaki.
Em pouco tempo Gil dormiu, mas Ninsun passou a noite em
claro. Não conseguia esquecer do Anunnaki.
- E se realmente precisar de ajuda? Não posso deixar uma
criatura sofrendo, ainda mais quando me implorou por socorro! – Estes
pensamentos martelaram em sua cabeça a noite toda.
Quanto Gil acordou o dia já estava claro e, havia algumas
frutas dentro da caverna, sua mãe as havia colhido em uma árvore próxima.
- Coma Gil. – Falou Ninsun – A mãe precisa fazer uma coisa.
- O que mãe? – Perguntou Gil já com a boca cheia de fruta.
- Vou ajudar aquele Anunnaki!
- Mas porque mãe, eles não são maus, merecem sofrer.
- Filho – Ninsun abaixou-se próximo a Gil e, calmamente
falou -, eles são maus, mas nossa espécie é boa e solidária, ele me pediu
ajuda, tenho que ajudá-lo. Põe-se no lugar dele, como você ficaria se
precisasse de ajuda, e não obtivesse?
Gil nem precisava se por no lugar do Anunnaki, sabia bem o
que ele estava sentindo, como se o sentimento fosse dele próprio. O Anunnaki
estava com medo, achava que ia morrer, e sentia dor e muita sede.
- Mão – falou Gil -, leve água para ele mãe!
Ninsun sorriu um sorriso meio forçado. Tinha medo de não ver
Gil novamente, medo de não voltar, de estar indo para uma armadilha. Deu um
beijo carinhoso em seu filho, fez recomendações para que não saísse da caverna
até ela voltar, e foi em direção ao Anunnaki.
Gilgamesh, ao contrário de sua mãe, não se preocupou. De
alguma forma sabia que o Anunnaki estava sozinho e, pelo menos por hora, era
indefeso.
O Chanceler está em frente ao seu computador biológico.
Desde os tempos de universitário, é seu costume criar
anotações, rascunhos de seus planos, pensamentos e idéias. Isso o ajuda a
pensar, a se organizar. Sempre soube bem dos riscos de expor suas idéias em
mídia. – As informações poderiam ser “hackeadas”. – Mas não em Nippur.
Tem muita confiança em Nebo, aliás, fora Kalkal é o único em
quem realmente confia. Mais até do que no seu assessor. Nebo já provara, por
diversas vezes ser um profissional exemplar e, sobretudo, discreto. Jamais
revelaria ou se apoderaria de arquivos que não lhe pertencem e, em Nippur é o
único com conhecimentos para tal.
- O que fazer com Anzu? – Esta era a pergunta.
Ele já havia dado muito trabalho, mas não poderia dar a ele
o mesmo destino que reservara a outros. Sua morte certamente alvoroçaria seus
amigos ambientalistas e certamente traria o foco da imprensa de Nibiru sobre
Nippur, e isso não poderia acontecer.
O Chanceler sabe bem a força que eles possuem, foi graças
aos ambientalistas, mais precisamente, graças a Anzu que o próprio rei Anu
obrigou-se a realizar uma viagem não programada à Nippur.
E não veio a passeio, veio movido por um motivo mais grave.
Veio para prender o Chanceler Enlil.
***
- Majestade, a frota já está preparada para seguir até
Nippur, tão logo ocorra o alinhamento orbital. – Falou o assessor do Rei.
O momento esta chegando, e Anu está tenso com o que iria
ocorrer, afinal, Enlil é seu amigo pessoal, além de um grande líder político.
Já foi Primeiro Ministro, o cargo administrativo mais importante de Nibiru,
cargo este, que abriu mão para seguir a aventura de desbravar Nippur. Anu nunca
entendeu esta decisão de seu amigo, mas, sempre soube que Enlil não suportava
de viver à sombra de seu pai, e de sua pesquisa que o alçou a herói dos
Anunnakis, sabia de sua constante necessidade em superar o seu pai, mesmo
agora, que já estava morto.
Não seria nada agradável prende-lo, mas as leis precisam ser
respeitadas, e elas se aplicam a todos, inclusive a ele, o Rei, e ao Chanceler
de Nippur.
Enlil, seu irmão Enki e Anu cresceram juntos, como irmãos.
Seus pais foram grandes amigos, e parceiros na salvação de Nibiru. Prender
Enlil será uma tarefa árdua, e ele, como Rei, é quem deve executá-la. Sente que
deve isso à Enlil, a Enki e até aos finados heróis de Nibiru. Virou-se para seu
assessor e disse:
- Prepare minha espaçonave, eu irei pessoalmente para
Nippur!
- Majestade - argumentou o assessor -, Nippur é um planeta
hostil, selvagem, com instalações precárias...
- Eu sei disso. – Interrompeu o Rei - Mas é meu dever
prender, pessoalmente, Enlil. Afinal, ele não é um criminoso qualquer - deu uma
pequena pausa –, além do mais, já está na hora de assumir o controle de Nippur,
que agora pertence ao meu reinado. Providencie para que possamos decolar no
primeiro momento possível.
E o primeiro momento chegou.
A comitiva do Rei decola e, aos poucos vai avançando pela
atmosfera. Passar pela proteção térmica é uma emoção à parte. Por alguns
segundos, somente o que se vê do lado de fora da espaçonave é uma enorme mancha
dourada, belíssima. O tilintar das partículas raspando na fuselagem confere um
tom melódico ao momento.
Tão logo ultrapassaram a barreira dourada, revelou-se um
universo grandioso e lindo, pontuado com milhões de estrelas, formando um
grande tapete bordado de brilhantes. Essa é uma visão privilegiada para um
Anunnaki, nunca possível a partir do solo de Nibiru. Este foi, por séculos, o
motivo pelo qual os Anunnakis nunca se aventuraram no espaço. Não possuem o
privilégio de olhar a noite para o céu e imaginar mil coisas a respeito
daqueles pontos de luz, formar desenhos imaginários unindo-os, questionar se
existiriam planetas em torno de cada um e se, talvez, em alguns deles haveria
vida e, quiçá até, vida inteligente.
Anu estava em seus aposentos dentro da espaçonave, era sua
primeira vez no espaço e deveria estar extremamente excitado com a experiência,
porém, estava aflito e tenso.
Iria fazer algo que não gostaria, ficava imaginando como
falaria com Enlil, como ele reagiria, como ele, Anu, se sentiria ao prender seu
amigo Enlil. Começou a pensar em seu pai e em como ele agiria nesta situação.
Seu pai Anun, juntamente com Eni, o pai de Enlil e Enki,
salvara todos os Anunnakis de um fim certo e terrível, um fim, ocasionado pelos
próprios Anunnakis e seus atos inconseqüentes. Os dois Anun e Eni assumiram o
governo do planeta, agora unificado. Anun tornou-se Rei de Nibiru, enquanto
Eni, que era cientista, por escolha própria, tornou-se Ministro de tecnologia,
o que contribuiu, entre outras coisas, para o prolongamento indefinido do tempo
de vida dos Anunnakis.
O Rei Anun era sensato, imparcial e sempre tomou decisões
acertadas, elevando a vida em Nibiru a um novo patamar de prosperidade.
Anu gostaria muito de ser como seu pai, mas, sabia que, por
mais que se esforçasse não conseguia, não possuía a liderança e a sabedoria de
Anun. Ele assumiu o cargo vitalício quando seu pai faleceu, graças a um
acidente enquanto montava gogons selvagens, seu pai adorava grandes aventuras.
Desde criança Anu fora criado para substituir o Rei e seu pai o educou para
isso. Para Anu, esta fora a única tarefa em que seu pai não obteve existo, em
parte porque, ele próprio sequer imaginava que algum dia seu pai morreria e
quando morreu Anu não estava preparado o suficiente.
O chefe da segurança de Nippur comunicou a aproximação de
uma esquadra de espaçonaves, que chegaria em breve, e juntamente com elas, está
à espaçonave real.
Ao saber da informação, o Chanceler Enlil não se
surpreendeu. – Sou muito importante para ser preso como um qualquer. – pensou,
afinal, o Rei em pessoa estava vindo e certamente, este seria o motivo da
visita. A amizade com Anu seria de grande valia nesta hora, sempre conseguiu
manipulá-lo, desde que eram crianças.
A frota pousou, era composta por cinco naves: a do Rei, duas
da guarda real e duas que fazem o transporte regular entre os planetas. A
chegada das espaçonaves foi uma visão incrível, principalmente para os Lulu
Amelus, que nunca as tinham visto. Seus cascos lustrosos brilharam com o sol de
Nippur, seus foguetes lançavam chamas e um forte estrondo se fazia ouvir a
quilômetros.
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